"Foi a beleza que me pôs no verdadeiro caminho"
A mulher caminha, só, pelas ruas de uma cidade. É uma mulher muito bonita, esguia, morena, de grandes olhos amendoados e longo cabelo castanho arruivado. Fala francês com sotaque. Chora. Está a regressar a um lugar. "Lembro-me deste caminho", diz. Entra numa casa. É uma moradia, numa rua com árvores. Uma casa bem conservada onde, no que parece um escritório, descreve o lugar onde era a mesa da família. Mostra o esconderijo sob as escadas onde ela e a irmã brincavam, sobe ao último andar, um terraço com vista para o mar, um mar azul-verde com barcos de pesca. Um mar africano. "Era o meu lugar favorito da casa", conta, recortada no oceano Índico - é o Índico). Ao descer a escada, descreve a última vez que o fez, aos 11 anos, quando a luta entre facções forçou a família a fugir do país recém-descolonializado. "Ouvíamos as explosões, tivemos de sair a correr." Foi com a mãe, uma britânica - Jacqueline Marion Hards - , e a irmã mais nova - Pamela, hoje a viver em Washington - para a Rodésia, hoje Zimbabwe. O pai, o engenheiro Fernando João de Vasconcelos Mota e Cunha, ficou para trás, em Moçambique - sim, é de Moçambique que se trata. A mulher visita a empresa onde ele trabalhava. Um homem idoso entra e diz chamar-se Simão. Simão é, diz a narradora, um dos criados da família. A mulher comove-se: o homem diz-lhe: "É como se fosse família." Ela responde: "Tu és família. Sabes? Só tu te lembras de mim pequena, do meu pai. Todos morreram. Só tu." "Pois, Sandra", responde o homem.
Sandra: é um nome que ela não usa há muito e que não está disponível nas informações biográficas que pululam na Net, nos artigos em tantas revistas e jornais. Há até perfis que lhe garantem duas irmãs, uma das quais chamada Sandra. Não é a única confusão sobre esta mulher de aspecto tão jovem: nuns artigos garantem-na nascida em 1974, noutros em 1966. Doze anos de diferença, o mesmo dia para o nascimento: 15 de Agosto. Quanto ao nome que usa, Tasha, nem uma pista: é uma alcunha? Um diminutivo? Um nome próprio? Neste documentário de 52 minutos da France TV, La Belle Humanitaire (A bela benemérita), que lhe conta o percurso e lhe faz o retrato, o de uma criança africana exilada no Canadá a partir dos 13 anos (a Rodésia também pegou fogo pouco depois de Moçambique) que aos 19 foi "descoberta" pela Elite Models e acabou na capa da Vogue, fotografada por Steven Meisel, a voz off certifica que ela foi Sandra e depois passou a ser Tasha, sem mais explicações.
Mas sim, Tasha, que se afirma "coupine de Carla Bruni", que iniciou os estudos superiores em Relações Internacionais no Canadá para os terminar em 1998 em Paris com um diploma de Estratégia Internacional do Centro de Estudos Diplomáticos e Estratégicos, e que nasceu em 1966 (fará este ano 44 anos, por mais que os seus genes soberbos e campanhas publicitárias para a Nívea DNage, para a qual assinou em 2008 um contrato "como cara" por cinco anos, pareçam desmenti-lo) tem Tasha como nome de baptismo. É ela que, contactada directamente pelo DN, o garante: "O meu nome é Sandra Tasha da Silveira Pereira Bravo Osório de Vasconcelos Cochofell Mota e Cunha." E esclarece que, apesar de só ter vivido em Portugal durante seis meses em 1980, entre a saída de África e a partida para o Canadá, tem passaporte e nacionalidade portugueses. E acrescenta: "A família do meu pai vive em Portugal, e os antepassados dele desde 824."
Portugal não falta, de resto, na história contada sob o título La Belle Humanitaire e filmada em 2009 - ano da sua nomeação, em Abril, para embaixadora do Instituto Pasteur, e da inauguração, no mesmo mês, da maternidade que a fundação que criou em 2006, a AMOR (Aide Mondiale Orphelins Reconfort segundo o respectivo site, mas nomeada num perfil efectuado em 2006 para o jornal espanhol El Mundo como Aids Mozambique Orphanage Rescue - a primeira ideia foi a de devotar a organização à luta contra a sida em Moçambique, mas foi abandonada) construiu no Malawi.
Na Batalha, a exibir um anel com a cruz de Avis, de Nuno Álvares Pereira (que apresenta, na sua estátua equestre, como antepassado, mesmo se na informação biográfica que figura na página da AMOR se informa que o pai descendia do rei Afonso III de Leão, enquanto a mãe seria "descendente do rei da Escócia do século XI" e "de uma família do norte da França") e a rezar (é muito crente, diz a voz off) e no Douro, na casa/hotel de Maria Manuel Cyrne (Maria Manuel Fernandes Vasconcelos e Sousa, nome de solteira, que as revistas sociais nomeiam "viscondessa"), apresentada como "prima" e que a garante "o orgulho da família", Tasha exibe "as origens". "Ela é verdadeiramente portuguesa. Nós, as mulheres portuguesas, identificamo--nos com a Tasha. Nós, mulheres portuguesas, podíamos estar lá, no lugar dela. E isso é também viver um sonho", diz impante e em resumo a loura parente à câmara. Imagens de Tasha a cavalo (a maioria dos perfis publicados sobre ela referem ser uma cavaleira dotada e uma praticante do pentatlo) selam a certificação aristocrática reiterada ao longo do documentário, que passa também pelo Mónaco, onde vive (é amiga do príncipe Alberto e chegou a ser indicada, no final dos anos 90, como sua noiva), pelo Malawi (na maternidade que ajuda a financiar), por Paris (num encontro com um joalheiro da Place Vendôme que desenhou o logótipo da fundação) e por Bruxelas, onde se encontra com Durão Barroso - meses antes do convite para embaixadora da Comissão Europeia na luta contra a pobreza e a exclusão social, uma representação que, garante ao DN (e a assessoria de imprensa da Comissão confirma), é completamente graciosa, como de resto a presidência da Fundação AMOR.
Fora do quadro - fora dos 52 minutos de documentário, em que também entram imagens de sessões de moda nos anos 90 e do início da sua actividade humanitária com o envolvimento, em 1996, com o Nelson Mandela Children Fund - fica o resto de uma vida que não passou só pela moda e pelo humanitarismo. Tasha de Vasconcelos (como prefere ultimamente ser denominada, apesar de durante o tempo de modelo, nos anos 80/90, ser conhecida por Tasha Mota e Cunha) tentou ser actriz e como tantas das suas colegas modelos da época das tops (Claudia Schiffer, Cindy Crawford, Naomi Campbell, Tatiana Patitz, Elle McPherson) entrou em vários filmes e séries, numa época em que viveu com o marquês e designer Jean-Charles de Castelbac, conhecido pelo seu côté BD, no seu castelo medieval.
Entre a suprema futilidade do universo das revistas "do coração", o reino da moda e dos "famosos" e a miséria extrema de África: é, como ela admite na já mencionada peça de 2006 do El Mundo, "uma vida esquizofrénica". "Provavelmente acharão contraditório que faça estas coisas enquanto me interesso por trabalho humanitário. Mas não só acho que são coisas compatíveis como não considero que isto seja mau. Preciso das duas coisas. E quando as pessoas perguntam por que faço trabalho humanitário ou insinuam que o faço pela fama digo-lhes que nasci em Moçambique. Sei o que se passa no mundo e preciso de ajudar a melhorar muitas coisas."
No documentário, que termina após o auspicioso encontro com Durão Barroso - que a voz off recorda ser o representante do maior contribuinte mundial para as organizações humanitárias, a União Europeia - Tasha ri e conclui: "A minha vida está a mudar. Sou útil, não? Era o que eu queria."
Pode ser só conversa, claro: uma forma mais laboriosa de "aparecer". Mas há qualquer coisa de desarmante nesta mulher que, apesar da disparatada insistência nos certificados de nobreza, responde pessoalmente - e passados minutos - a mails de jornalistas e que os assina "Saudades". E que diz, como se tivesse de se justificar, de justificar ser tão bonita: "Foi a beleza que me pôs no verdadeiro caminho."